sábado, 27 de novembro de 2010

Vítima Civil
















ALVORADA NO MORRO



Amanhece o dia em alguma favela,
O Rio de Janeiro desperta.
E em um breve momento
Alguém se aproxima da janela.
Voltando os olhos ao céu,
Pintado ainda pelo vermelho
De um esperado alvorecer,
Que finda a noite de medo.
Uma oração se ouve baixinho:
Pai, mais um dia inicia
E devo deixar o lar,
Seguir em frente,
Preciso ir trabalhar.
A guerra explodiu lá fora,
As armas cospem sua intolerância.
Anunciam que é chegada a hora,
Do domínio do medo e da violência.
A nossa paz a muito foi embora.
Por isso te peço proteção,
Cuida do meu caminhar.
Aquieta meu coração,
Não me deixa tombar.
Pois ao lar eu quero tornar,
Meus filhos abraçar,
Minha mulher beijar.
Pai, por favor, nos proteja,
Para que o sangue que pinta o céu,
Não seja o meu.
Amém.

CARLOS MEDEIROS

Escândalo Moral




















DIÁRIO DE UM BRASILEIRO




O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o Presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.

O Presidente diz pela televisão
que "é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos".
As pessoas das cidades grandes
vivem amedrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.

O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.

Como se dormir na casa com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar a camélias.

O povo, um dia.

Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.

THIAGO DE MELLO

domingo, 21 de novembro de 2010

Sem Sentimentos


















SEM NADA


Queria poder te falar de amor.
Realizar teus sonhos.
Tocar teu coração,
Alegrar tua alma.
Queria poder te carregar em meus braços.
Te mostrar o mundo,
te levar aos céus,
E te dar o paraíso.
Mas não possuo nada,
Não carrego sentimento.
Estou vazio neste momento.
E se não te dou,
É porque não tenho.
Tive...
Mas não sei onde perdi.
Por isso então,
te peço desculpas, perdão.
Pelo nada entregue em sua mão.

CARLOS MEDEIROS

Ela Disse Não!
























ELEGIA




E quando o homem emudece em seu tormento
A mim me deu um deus dizer tudo o que sofro.
Que hei de esperar agora para tornar a vê-la,
Da flor ainda fechada deste dia?
O paraíso, o inferno estão-te abertos;
Que oscilantes sentimentos no teu peito! -Não há como duvidar!
Ei-la à porta do céu,
É Ela que te eleva e te acolhe em seus braços.

Foste assim recebido então no Paraíso,
Como se merecesses vida eterna e bela;
Não te ficou desejo esperança ou anseio,
Tinha aqui o seu termo a aspiração mais íntima.
E na contemplação desta única beleza
Logo a fonte secou das lágrimas saudosas.

Como o dia agitava as suas asas céleres
E parecia levar ante si os minutos!
O beijo da tardinha, selo fiel a unir:
E assim será ainda para o sol de amanhã.
As horas, semelhantes no seu fluir brando,
Como irmãs eram, mas nenhuma igual às outras.

Esse último beijo, doce e cruel, rompeu
Enredo esplêndido de amores entrelaçados.
Meu passo ora se apressa, ora pára, e evita
O limiar, como expulso por anjo de fogo;
O olhar fixa desanimado o caminho sombrio,
Volta-se ainda para trás, vê a porta fechada.

E sobre si fechado agora, o coração,
Como se jamais se abrira, e horas felizes,
Rivais em brilho dos astros todos do céu,
Não tivesse sentido nunca ao lado dela;
E desgosto, pesar, censura, pesadelo
O carregam neste ambiente que o sufoca.

Pois não te resta ainda o mundo? Estes rochedos
Não estão eles coroados de sagradas sombras?
Não amadurece os frutos? Um campo verde
Não corre à beira do rio entre bosques e prados?
E não se arqueia essa Grandeza além dos mundos,
Ora rica de formas, ora em breve sem formas?

Quão leve e graciosa, em tecido claro e suave,
Qual Serafim, de entre o coro de nuvens pesadas,
Como que igual a Ela, no céu azul,
Forma esbelta paira de aroma resplandecente;
Tal qual tua a viste bailar em dança alegre,
Das formas adoráveis a mais adorável.

Mas é só por momentos que atrever-te podes
A reter em vez dela um etéreo fantasma;
Regressa ao coração! Melhor a encontrarás,
É lá que Ela se move em figuras mudáveis;
Em muitas se converte a Forma Uma,
Em milhares delas, cada vez mais querida.

Como para receber-me Ela esperava à porta,
E, degrau a degrau, me levava à Felicidade;
Depois do último beijo me alcançava ainda
Para me premir nos lábios o último de todos:
Tão nítida, tão viva fica a imagem da Amada
Inscrita com chamas no coração fiel.

No coração, firme qual muralha de castelos
Que para Ela se guarda e dentro em si a guarda,
E por Ela se alegra ao sentir que ainda vive,
E só sabe de si quando Ela se revela,
E se sente livre em prisões tão amadas,
E não luta senão de gratidão por Ela.

Se apagadas estavam dentro de mim
A capacidade e a precisão de amar,
O desejo de esperança de alegres projetos,
De decisões, de ação veloz, logo voltou!
E se o amor jamais deu ânimo ao amante,
Ficou provado em mim do modo mais amável.

E só graças a Ela! - Que íntimo temor
De importuno peso dentro da alma e do corpo!
O olhar rodeado de imagens horrorosas
Na aridez de um coração deserto e oprimido;
Eis que alvorece a esperança à porta conhecida,
E Ela mesma aparece à luz de um sol suave.

À paz de Deus, que aqui na terra vos concede
Mais ventura que a razão - dizem os livros -
Comparo esta paz serena do amor
Na presença do ser entre todos amado;
Repousa o coração, nada vem perturbar
Este profundo sentir de só lhe pertencer.

No mais puro do peito uma ânsia se agita
De espontâneos nos darmos só por gratidão
A alguma coisa de mais alto, puro, desconhecido,
Que em nós resolve o Enigma Inominado;
Chamamos-lhe: Piedade! - Esse êxtase feliz
Sinto-o dentro de mim quando estou perante Ela.

Ao seu olhar, como ao do sol que nos governa,
Ao seu hálito, como às brisas primaveris,
Funde, bem rígido de gelo que estivesse,
O egoísmo no fundo de antros hibernais;
Nem interesse mesquinho ou vontade que durem,
Tudo isso o vento leva quando Ela vem.

É como se Ela dissesse: "Hora após hora
Se nos oferta amigável a vida;
Do que ontem passou bem pouco já sabemos;
O que amanhã virá é proibido sabê-lo;
E sempre que ao cair da noite tive medo,
Ao pôr-do-sol eu via ainda algo que me alegrava."

"Faz pois como eu faço e olha, alegre e sensato,
O momento de frente! Sem qualquer demora!
Acolhe-o depressa, benévolo e vivaz,
Quer para a alegria na ação, quer para o amor;
Onde tu estejas, sê tudo, infantil sempre,
E assim serás tudo, e serás invencível."

Bem fácil te é falar - pensei -; pois um deus
Te deu por companhia a graça do instante,
E cada qual se sente, em tua graciosa presença,
Mesmo nesse momento o dileto dos Destinos;
Assusta-me o sinal que me manda afastar-me
De ti - para quê tão alta sabedoria?!

E agora estou longe! Ao minuto presente
O que é que lhe convém? Não saberia dizê-lo;
Com a beleza me oferece ele muitas coisas boas
Que apenas pesam, e tenho que repeli-las;
Uma ânsia indomável faz-me andar errante,
E lágrimas sem fim é tudo o que me resta.

Ora brotai então! E correi sem parar,
Que este fogo interior sufocar não podeis!
Violento furor me dilacera o peito
Onde a vida e a morte ferem luta feroz.
Para as dores do corpo, sim, remédios encontraria;
Mas ao espírito falta a decisão, o querer,

O poder compreender: - Como passar sem Ela?
E vai repetindo mil vezes essa imagem,
Que ora paira hesitante, ora lhe é arrancada,
Ora confusa, ora brilhante em pura luz;
Como poderia dar-me o mínimo conforto
Este fluxo e refluxo, este vir e partir?

Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros!
Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo;
Segui vosso caminho! Olhai o mundo aberto.
A imensa terra, o céu sublime e grande;
Observai, procurai, colecionai os fatos,
Balbuciai o mistério da Natureza.

Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi,
Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses;
À prova me puseram, deram-me Pandora,
De bens tão rica, mais rica ainda de perigos;
Impeliram-me para a boca dadivosa,
Separaram-me dela, e assim me aniquilam.

JOHANN WOLFGANG VON GOETHE

domingo, 7 de novembro de 2010

Fome de Quê?























SOCIEDADE ANTROPOFÁGICA




No início devoramos alguns europeus.
E outros fugiram a espalhar,
Que encontrar um povo sem Deus,
Nas terras de além-mar.

Até hoje nos devoramos,
Em rituais de atos e palavras.
Com nossas formas nos deliciamos.
Enquanto eles devoram nossas mascaras.

Eu te devoro,
Tu me devoras,
Ela o devora,
E nós, devoramos a todos.

Somos eternos famintos.
Fome de igualdade,
Fome de justiça,
Fome de comida, mas...

Nos fartamos de egoísmo,
Nos empanturramos de orgulho,
Nos saturamos de falso heroísmo.
Para depois vomitarmos o nosso cinismo.

Roemos até o osso,
De uma sociedade destruída.
Com lama até o pescoço,
Procurando migalhas apodrecidas.

Devoramos nosso mundo.
Não dividimos nada.
Pois tudo que caído chega ao fundo,
É alimento que engorda e mata.

CARLOS MEDEIROS

Tudo Igual





















CARTA AOS MORTOS


Amigos, nada mudou
em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há récordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.
Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.
Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.
Nada mudou em essência.
Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração , insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA